setembro 25, 2009

Nefertiti - Wayne Shorter

Apetece-me deixar aqui uma nota autobiográfica que, de certo modo, responde a alguns amigos que me perguntam qual a música da minha preferência. Fico quase na situação de, ao observar uma noite estrelada, ter de escolher qual a estrela que prefiro.
A música sempre me fez sonhar acordado. Tenho gravações, no velho vinil, que quase se gastaram, de tanto serem ouvidas. Uma delas, que já deixei para o meu filho, foi o álbum de Miles Davis, Nefertiti. Comprei a edição em CD e continuo a ouvi-lo.
Não sei explicar porquê, mas a audição dos temas Nefertiti e Fall desse album, sempre me fizeram sonhar com o mar. Viajar sem destino num mar calmo de verão, longe da costa, tendo por companhia o remorejar do casco, cortando as águas, e o piar das gaivotas voando sobre mim por puro prazer. Por certo o seu autor, Wayne Shorter, nunca se meteu num barco e isso prova que a música nada significa para além dela própria.
Muitos anos decorreram até poder concretizar esse sonho mas, já depois dos 50, pude aliar esses dois supremos prazeres: vela e jazz. Nada mais sublime que realizar um sonho. Velejar ao som de Miles, nesse clima de contemplação e liberdade que as composições de Shorter, pontificadas pelo piano de Herbie Hancock e pela bateria de Tony Williams, deram a este final da época acústica de Miles. Só lamento que essa experiência não tivesse sido partilhada por outras almas, mas faltava sempre um elemento comum; estavam indisponíveis, não gostavam de Miles ou enjoavam...
Porquê esta história agora? Quando acordamos de um sonho temos necessidade de o partilhar com outros, sem entender que um sonho não pode ser partilhado.
Aqui apenas posso partilhar a música:
No original :Nefertiti
e na versão de um talentoso e desconhecido pianista:



Para ouvir 30 segundos de cada tema do álbum ou para comprá-lo clique aqui

19 comentários:

Range-o-Dente disse...

Caro Eurico Moura,

A mim, parece-me que de há já bastantes anos o Jazz anda um bocado por baixo.

... defeito meu?

Eurico Moura disse...

Caro RoD

Cada um tem a sua sensibilidade...
Para mim nunca andou tão por cima.
As fusões a que foi sujeito e a malta nova, até em Portugal, tem trazido uma frescura ao Jazz que o faz ser o estilo musical mais actual e rico.

Range-o-Dente disse...

Deixe-me verter um pouco as minhas mágoas.

Há muitos anos que não consigo ouvir (gravação recente) uma cantora jazz que me encha a alma.

Oiço instrumentais que me parecem saídos literalmente de cabeças de sintetizador.

Parece-me que a malta que toca fica feliz pela perfeição técnica mas não pela música propriamente dita.

O bicho homem tem idiossincrasias e a música deveria te-las por arrastamento.

Eurico Moura disse...

Isto não o alegra? http://portudo-e-pornada.blogspot.com/2009/09/in-your-eyes.html

ou isto: http://portudo-e-pornada.blogspot.com/2009/02/enquanto-ha-esperanza-ha-vida.html

Range-o-Dente disse...

Admito que posso estar a ficar esquisito, mas eu sou mais disto:

http://www.youtube.com/watch?v=PbL9vr4Q2LU

.

Eurico Moura disse...

Claro! Mas se só comermos caviar beluga, morremos de fome...

Range-o-Dente disse...

Tá bem. Habituei-me mal.

Olhe esta:

http://www.youtube.com/watch?v=mzNEgcqWDG4&feature=related

... não é jazz, há fífias na orquestra, deve estar com uma pedrada qualquer mas, chiça.

Até as fífias soam a humano.

Eurico Moura disse...

Nã! Isto já não me titila...

Você, musicalmente, parou no tempo.
Não há ninguém vivo que o convença?

Ouça com atenção o jovem de 13 anos que eu mostro ao piano com a Nefertiti. !3 anos!
Eu aposto na malta nova que emerge com carradas de talento.

Range-o-Dente disse...

EM:

"malta nova que emerge com carradas de talento."

Isso é verdade. Mas a malta nova tem pela frente uma formidável barreira. A barreira formada pela enorme quantidade de gurus que ou partiram ou para lá caminham.

Eu suponho que a malta nova lida mal com esse legado e parece-me que tentam rodeá-lo tentando evitá-los ou, quanto muito, redesenhá-los apesar de os não terem bebido suficientemente.

O resultado parece ser carradas de talento inconsequente porque esse talento parece não se conseguir consubstanciar em algo concreto. Não poucas vezes me parece que tentam reinventar a roda.

Fico ainda, frequentemente com a impressão que a malta nova que toca um género não ouve música desse género. Toca o que toca mas de corpo presente e alma distante.

Eurico Moura disse...

Numa coisa eu posso concordar; não se volta a repetir tão cedo a onda de criatividade dos anos 70 e 80.
Onda essa que foi contestada pelos purista conservadores, no jazz e noutras formas de arte. Mas isso tem a ver com a onda libertária que mudou a sociedade de alto a baixo. Mas parece-me que o meu amigo não a viveu muito intensamente.
Não acredito que tal se volte a repetir sem que uma profunda crise se abata sobre a sociedade de consumo capitalista.
Mas voltando à alma. É precisamente aí que eu discordo. Vejo muitos jovens com alma e tradição e tenho apresentado aqui, e continuarei a apresentar, exemplos disso. Veja o que se passa em El Sistema. Ou só o cheiro a Chavez basta para o afastar? O homem até nem se aproveita disso para se promover. Se fosse aqui já o Sr. Engenheiro tinha feito inúmeras aparições a beijar as criancinhas devotadas à música.

Range-o-Dente disse...

"Veja o que se passa em El Sistema."

Ora, isso mesmo. Tinha-me esquecido de acabar esse assunto. Vi metade, tive de interromper mas vou voltar à carga. Do que vi gostei, mas falta o resto.

ml disse...

O jazz nunca me ‘agarrou’ totalmente, a não ser o das big bands de New Orleans e de algumas coisas de um ou outro intérprete. Não sou uma consumidora regular, portanto.

Aqui em casa há muito jazz, mas confesso que pouco foi comprado por mim. E o que foi provavelmente nem jazz deve ser, não sei, mas é do que gosto, e anda mais pelas franjas ou pela fusão de franjas, como o Ginger Baker, a Nina Simone ou o jazzy Van Morrison. Não serão os Vascos da Gama do jazz, mas é o que me satisfaz para consumo pessoal.

Também me pelo por covers, como as do Zé Eduardo Unit ou da Aretha. Ela é mais soul, mas dá um pezinho ‘round midnight.
Nada de muito cool nem ortodoxo.

E digo tudo isto porque o hábito de ouvir regularmente e o entusiasmo dos iniciados costumam operar maravilhas, mas comigo nunca se deu o clic como aconteceu com arranjos com que de início não ia mesmo à bola, como os riffs mais metaleiros. Agora dá-me um prazer imenso ouvir os U2, por ex., transformar totalmente a escrita de canções tradicionais.

Pode ser que o jazz também ainda me leve à certa, quem sabe?

http://www.youtube.com/watch?v=eqjM9TjQNdA&feature=player_embedded#t=65

Eurico Moura disse...

ml.
Talvez venha a ser descoberto, com a sequenciação do genoma humano, o gene do jazz ;-)
A minha experiência começa por volta dos 12 anos. Um amigo da família ofereceu-me um disco de uma orquestra ligeira tipo Helmuth Zacarias, mas que tinha um som e uma marcação do tempo diferente. Mais tarde viria a saber que era swing.
Já era, como meu pai, um viciado da música, mas fiquei rendido aquele som. Aquele balanço, por vezes inesperado, tomou conta de mim. Comecei à procura de mais e o tal amigo forneceu mais vinil.
Nunca mais parei. Aquele compasso binário da música que os jovens ouviam à época dos Beatles (1, 2 esq. dir.), não me dizia nada. Para mim a música tinha de ter swing.
Aquela surpresa constante de ver o tempo dividido e marcado de forma irregular, acentuando os tempos fracos, era tudo o que eu queria ouvir.
Depois foi a Bossa Nova. Estava lá tudo e com melodias e poemas que me tocavam o espírito de jovem adulto.
A fusão do jazz com o samba e depois com outras cores, coisa que irritava os puristas, foi abrindo caminho para que eu olhasse para outras músicas que, antes, não me seduziam.
É orgânico. Ou se tem ou não.
Pelo caminho, arrastei muitos amigos, que no início resistiam, e depois se viciaram também. Arrastei o meu filho e os filhos das minhas mulheres, meus adoptivos. Aquela música maluca foi ganhando cidadania e hoje está em todo o lado infectando rock, pop, hipop, clássica...

ml disse...

É orgânico. Ou se tem ou não.

Só pode, porque então a Bossa Nova é que... não faz mesmo o meu género. Aquele tom grave e um tanto monocórdico não vai muito comigo. Mas para quem a grande paixão musical foi o Bob Dylan, nunca poderei dizer que não me agrada este ou aquele género, porque dou comigo a gostar de peças que se inserem no tal género que digo não apreciar.

Um dia fiquei aliviadíssima quando o José Duarte disse que não sabia o que era isso de gostar de discos, que ele gostava era de algumas faixas de alguns discos. É mais o meu caso, tirando o tal de Dylan, de quem acho que gostava de tudo. Um dia fui vê-lo ao Dramático de Cascais e foi a grande desilusão, aquela never-ending metamorfose de uma certa fase da carreira fê-lo apresentar em Portugal as versões mais horrorosas que alguma vez ouvi.

Desde miúda que ouço música, houve mesmo uma época em que passava as tardes esticada no chão a tirar as letras das canções, antes da net e do acesso a tudo. Punha o disco uma, duas, três, quatro vezes a girar até conseguir o que queria. Isto, para o mastigar do Bob Dylan, era obra.

Sempre em minha casa houve discos de estilos muito variados, mas acabei por me fixar mais no que se intitulava de ‘anglo-americana’, embora com grandes excepções caso a caso, como é a MPB, alguma francesa e mais uns casos avulsos. E cabo-verdiana, essa corresponde mesmo ao ‘meu ritmo’, seja lá isso o que for.

Eurico Moura disse...

ML,
Parece que os gostos criam anti-corpos...
Nunca gramei o Dylan. Partilhava a sua postura política mas da música, nem pó. Aquela toada chateava-me. Faltava o tal balanço.
Agora aquela de você gostar de mornas e coladeras e detestar a bossa é que me intriga. Quem não gosta da Garota de Ipanema? Tom Jobim é, de longe, o compositor brasileiro mais ouvido no mundo.
Mas fica prometido que num post futuro vou incluir Horace Silver, pianista de ascendência e influência cabo-verdiana (Horace Ward Martins Tavares da Silva) num tema saído directo dos cânones da coladera

Range-o-Dente disse...

No comentário acima vou pelo Eurico Moura.

Mas também eu não gostando de fado gosto de ouvir Carlos do Carmo.

Até aos meus 40 anos desejei perceber a harmonia da bossa nova. Neste momento, não a percebendo (tecnicamente - os intervalos, etc), consigo tocá-la. Levei um par de empurrões de quem percebe da poda a sério.

Tendo aí entrado, passei a gostar ainda mais da dita porque, de alguma forma, passei a ouvir 'por dentro'(?).

Sei pouco de outras artes mas percebo que há coisas que não se conseguem apreender apenas contemplando.

Dito tudo isto, continua a gostar de Doors ... Led Zeppelin, etc.

Eurico Moura disse...

É de facto um mistério...
O meu filho André é um apreciador de jazz, (desde o berço, coitado), fã de Pat Metheny, mas igualmente fã de Pearl Jam. Nunca consegui entender...
Para mim, para além do jazz e da clássica (que aprecio de uma forma diferente - eis a questão) apenas as músicas que utilizam aqueles acordes do jazz/blues de 7ª, me satisfazem realmente. Pink Floyd, Dire Straits, Seul Music (Motown), Santana, enfim um leque muito variado mas sempre com o mesmo "modo"
Outras músicas de cariz diferente como o fado (C.Carmo, Mariza) ou flamengo, ouço esporadicamente, mas com outra atitude.
Concordo com RoD quando diz que conhecer "por dentro" ajuda.

Range-o-Dente disse...

héhé.

Cá está. Eu abomino a Mariza e a outra caramela dos Valha-me-Deus.

.

ml disse...

Mais as coladeiras do que as mornas. E não detesto a bossa, a minha identificação depende muito da produção vocal e instrumental, mas no geral não é uma prioridade.
O que não me agrada mesmo é a música muito penteadinha e engravatada, atraem-me vozes e registos assimétricos. A minha última ‘aprendizagem’ musical foi na área de um rock mais pesadote, talvez por uma maior atenção (por vezes forçada) ao fenómeno, dado que o meu filho desde os 14 anos faz parte de bandas, como baixista.
É mais um caso a acrescentar à sua surpresa, pois é dele a maior parte da colecção de jazz que existe cá em casa. Acho que a malta mais nova consegue perfeitamente conviver com fronteiras mais diluídas e fazer pacificamente a síntese de géneros e estilos, e nem me refiro apenas à música.

A postura política do Dylan é que não é tão linear assim. Pode dizer-se que levou um décimo da vida a afirmar-se como estandarte, concretamente até ao festival de Newport, e nove décimos a declarar-se inocente. No entanto ficam as lyrics e continuo a achar que pouca gente, antes e depois dele, teve ou tem um cenário mental tão lúcido e libertário, embora me pareça que isso não corresponde exactamente ao dia-a-dia do sr. Robert Zimmerman. Mas não sei, deixei de o acompanhar.